segunda-feira, 18 de março de 2013

Diálogo entre um filósofo pós-moderno e uma imagem de São Francisco


 (Ensaio de iconologia sobre esculturas de Marco Aurélio dos Santos publicado na Revista Arte Web Brasil.)
Carlos Alberto Dias, 2002
Filósofo e artista plástico.
“Nobile claret opus, sed opus quod nobile claret
Clarificet mentes, ut eant per lumina vera
Ad verum lumem, ubi Christus janua veras.”.
Abade Suger de Saint Denis.

17 horas. Exausto encerro a aula. Despacho as praxes burocráticas do ofício. Saio às ruas. O relógio marca 17h23m. 21°C. Deixo me levar pelo doce flanar baudeleriano. A cabeça cheia de pensamentos. A aula parece não ter sido boa. O soar dos sinos me desperta. 18h. Paro diante do templo. Contemplo sua fachada. Os olhos embotados pelos diversos pensamentos parecem não ver. O rumor das ruas e das multidões espelha-se na confusão da mente. Transpassei o átrio e um silêncio repentino produziu estranha calma vazia. Do largo portal as figurações pareciam contemplar-me. Temeroso, retardei o passo. Mal adentrei o interior inobservado, e o coração se encheu das diversas cores de todo modo variadas que preenchem os altares e capelas. Os olhos não podiam decidir o ponto sobre o qual primeiro fixar o olhar. Os tetos floresciam como vestes adornadas. As paredes refiguravam a paixão. Contemplei os feixes de luzes que penetram através das janelas, admirei-me do inestimável esplendor do vidro e da variedade preciosa das diversas obras. Da variedade dos metais, da ornamentação do ouro e da prata, das gemas e dos marfins. Da sutileza das pedras e das madeiras. Do refinamento do barro modelado. O cheiro da fumaça do incenso inebriava-me. O silêncio dos cânticos se espalhava pelo templo absorvendo-me inteiro. O olhar seguiu um feixe de luz branca que descia do alto e iluminava a imagem de São Francisco.
Enlevada pelo deleite das formas vigorosas e ritmos sutis que modelavam aquele barro, perfeitamente preparado, a sensibilidade perscrutava esta imagem que comovia a alma pelo que sua história instruía.
São Francisco de Assis com seu hábito rústico amarrado à cintura por grosso cordame de duas voltas que, junto com o passo adiante da perna direita, define os ritmos geométricos das dobras e drapejados da vestimenta. Os semicírculos pendentes dos ombros definem a gola vincada na frente por dois arcos que emolduram o pescoço e concordam com o movimento da cabeça e com o sorriso nos lábios. Semicalva a cabeça se reclina para a esquerda. Olhos cerrados. O sorriso nos lábios vinca as linhas de expressão em torno da boca e fazem saltar as maçãs do rosto. Bigode, cavanhaque e os tufos de cabelos terminam por delinear os caracteres deste velho com traços joviais e quixotescos. Do braço direito, envolto por drapejado serpenteado, pende a enorme mão de grossos dedos e juntas exageradas. O braço esquerdo, igualmente serpenteado pelo drapejado, curvando-se na altura da cintura precipita-se para frente mostrando a mão de dedos finos curvados para trás. Da mão pende a lanterna acesa. Lanterna em tudo semelhante à lanterna de Diógenes, o cínico. Abrupta esta figura, ênfase hiperbolizada pela desproporção e disposição central, interrompe o enlevo da alma e nos devolve ao pensamento:
- São Francisco de Assis, um cínico?
- Que estranha disposição de figuras e lugares permitiria tal associação de significados?
- Qual perene atributo de alma poderia unir a história destes dois homens, tão distantes no tempo?


Sabemos por obras e histórias que certa feita um cidadão ateniense encontrou Diógenes e com ele teve o seguinte diálogo:
    - Que fazes, Diógenes, com esta lanterna acesa na mão a plena luz do dia?

    - Procuro um homem justo, respondeu-lhe Diógenes.


Diante da imagem modelada por Marcos Aurélio dos Santos poderíamos igualmente perguntar:

    - Que fazes, Francisco, com a lanterna de Diógenes na mão? Foras, por acaso ou por obras, cão vadio como o discípulo daquele Antístenes que freqüentara os círculos socráticos e fundara o sítio de Cinosargo para afastar a si e os seus da luxuriante Atenas?

    - Jovenzinho, entreguei-me às alegrias da vida cortês. Compus canções, meti-me em algumas aventuras cavaleirescas. Comerciei tecidos, como meu pai.

    - Vivestes e gozaste os luxos e as glórias das cidades toscanas como os nobres atenienses gozaram as glórias de Atenas?

    - Inquietações agitaram minh’alma. Entristecido pelo ócio, pela leviandade, pelas fabulações supervazias, pelas futilidades, pela curiosidade, pela bebida, pelos combates, pelas luxurias, pelos sacrilégios, pelos perjúrios e outras ações que afastavam a mim e os meus dos olhos de Deus, à minh’alma falou o Cristo crucificado.

    - Depois de ouvirem os nobres ensinamentos de Sócrates, aqueles cínicos perambularam descalços como mendigos constrangendo os atenienses. Tu também mendigaste para constranger os teus?

    - Tocado pelo gesto de Pedro Valdo, despi-me e depus aos pés de meu pai minhas vestes, meus adornos e meus dinheiros.

    - Aqueles, exagerando o exemplo socrático, renegaram a família, a propriedade e o Estado; tornaram-se inimigos de toda hierarquia e toda distinção social. Tu também quiseste renegar tudo?

    - Não deixei de cantar, tornei-me jogral de Deus.

    - Tu, mesmo nu diante de teu pai, não renegaste toda instituição humana, pois aceitaste que o manto cardeal da igreja te cobrisse.

    - Tornei-me humilde servidor dos servidores de Deus e desposei uma dama: Dona pobreza.

    - Aqueles cães vadios abraçaram a pobreza para nos ensinar a desprezar os reinos dos homens neste mundo.

    - Eu, como Jesus fizera com os seus, lancei meus discípulos vestidos com uns trapos e as mãos vazias para viverem junto dos pobres, trabalhando nas herdades e nas oficinas, cantando aos seus companheiros a perfeita alegria da vida humilde.

    - Então porque segurou a lanterna daquele Diógenes, alma tão diferente de ti nos propósitos e fins?

    - Lemos no exórdio da criação do mundo que o homem foi feito a imagem e semelhança de Deus. Animado pela inspiração divina, dignificado pela sua excelência, adquiriu prerrogativas sobre todas as criaturas; dotado de razão pela Divina prudência, mereceu participar do Seu engenho e de Seu conselho. A indústria humana apropriando-se desta capacidade transmitiu-a através dos tempos até os dias predestinados da religião cristã. É justo, portanto, que a piedosa devoção dos fiéis não esqueça as provisões legadas a nós por nossos predecessores.

    - O que poderíamos aprender daqueles cães que pareciam amar tanto a si mesmos que desprezaram o próprio corpo?

    - Ao buscarem viver segundo o preceito socrático - conheça a ti mesmo. – buscaram domar volições e desejos artificiosos.

    - Pagãos! Viveram na ignorância da Lei mosaica.

    - Amantes da simplicidade intuíram Deus único.

    - Aqueles? A quem aprendemos a desprezar por desprezadores da sociedade humana?

    - Homens de vida simples buscaram na observação da natureza criada inspiração para ensinar o homem universal vivendo em igualdade com todas as criaturas.

    - Panteístas! Dissolveram Deus na natureza.

    - Ensinaram a virtude que é universal. Buscaram a felicidade na vida virtuosa, que é o conhecimento do supremo bem.

    - Em tua vagabundagem lírica pelos campos da Úmbria, Francisco, vivestes jubilante, cheio do espírito de Deus. Cada criatura era para ti um sinal do poder e da bondade do criador. Se visse uns campos incrustados de flores, logo os exortava ao louvor do Senhor. Às águas que correm, às sendas que passam, às vinhas e às hortas semeadas, às terras incultas, aos fogos dos engenhos, às aves do céu, ao sol e à lua, aos ventos e à morte, a tudo exortava ao amor e à obediência a Deus. De Irmão e irmã chamava todas as criaturas. Donatário de prerrogativa recusada aos outros, penetrava o segredo de todas as criaturas.

    - Os favores de Deus são abundantes para todos, sem ser específicos para ninguém.

    - Acolhendo a natureza toda na criatura permitiu que aquele mesmo manto cardeal que um dia te cobriu domasse também as antigas crenças pagãs que se alimentavam do poder das forças agrestes. Venceram, com teu exemplo, as heresias cátaras.

    - Simplesmente vivi pelos campos da Úmbria e todas as belezas criadas me acompanharam em alegre cortejo. Liberto do corpo, vivi a gloriosa liberdade prometida a todos no filho de Deus.

    - Fostes puro amor. Aqueles cães, ódio!

    - A lanterna de Diógenes que o escultor colocou em minhas mãos é o índice da perene Luz que, revelada, iluminara todas as criaturas, minhas irmãzinhas.

    - No seu imenso amor pelas criaturas, por acaso, negligenciaste o vôo da coruja de Minerva?

    - Esta Luz, que brilhou na alma de Diógenes e o guiou no caminho do conhecimento da natureza, é a mesma Luz que brilhou no Espírito daquele irmãozinho de Ilchester, Rogério, levando-o a ensinar a todos os homens os primeiros passos da verdadeira ciência sobre as criaturas.

    - (...)?


domingo, 24 de fevereiro de 2013

Casa onde Adélia Nasceu, em Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais, Brasil.

A Santa Doida de Adélia


Entre o abrir e o fechar de uma janela,
Pelas frestas da veneziana,
Ele a visitou.
Sem clarões nem estrondos,
Entre o perfume dos gerânios
E a palidez da lua,
Ele a visitou.

Antes calma e arrazoada, a Santa endoideceu.
Doida, doida pelo Amor de Deus,
A Santa,
Iluminada pelos tremeluzes da luz de vela,
Cantou seus lamentos,
Chorou os anos de indecisão,
E olhou para os cacos de sua vida
no solo de sua morada.

Mas os barulhos da rua eram tantos,
Tão altos aqueles barulhos na rua,
Que ninguém, além daqueles gatos,
Ouviu o lamento da Doida Santa.
Ninguém, além do retrato na parede,
Viu a Santa Doida, todos os dias, chorando.

(Por isso o cavaleiro de plumas brancas não veio...
Também, eram outras as fantasias naquele carnaval!)

Se quiseres saber.


Insone na madrugada
O Bobo mentou:
Nos amores da
Última invernada
Três coisas faltaram
Para com o anjo ridente
O final desenlace haver.

Se a Dama, antes que a pérola
A ostra a outro entregue,
Conceder-me
Um último desejo
Em qualquer madrugada
De vinho e luar
Ao ouvido lhe segredarei.

Anjo diáfano,
Abusaste de seu direito a venustidade.
Eros cobrará seu tributo àPhilis
Dançando às Bacantes
A dança libidinal.

Solidões


A solidão que se sabe só,
protege a vida,
a solidão que é abandono,
coroe a alma.
Porque tirou-me minha
doce solidão?

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Um Deus


Um só Deus?
Como unívoca voz imperativa?
Isso, meu Jesus santíssimo, eu não entendo, não.

Mas, entendo sim a intolerância desmedida dos teus,
 Porque, sós, como um só Deus,
Mal compreendem a equivoca voz de seus maus-quereres.


Um só Deus?
Como unívoca voz imperativa?
Isso, minha virge santíssima, eu não entendo, não.

Mas, entendo sim as angústias desmesuradas dos teus,
Porque, sós, como um só Deus,
Insistem em andarem sós nas multidões.

Entre amigos

Anjo diáfano
Abusaste de seu direito a venustidade
Eros cobrou seu tributo à Philis
E  noite dançou às Bacantes
a dança libidinal.